sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Ruminar




Escrevi o texto que se segue no primeiro semestre da faculdade de direito, numa prova de metodologia, disciplina que ministrava o querido professor Mauro Iasi. A prova consistia em fazer uma resenha ou “ensaio” com base num texto de José Carlos Bruni, intitulado O tempo da cultura em Nietzsche, disponível aqui, e que trata da pressa com que a cultura moderna consome a informação, sem necessariamente meditar a respeito dela.

Inspirado pelo final do semestre, cm certa liberdade literária e, agora eu fico pensando, sem me preocupar muito com a nota ou em conferir ao texto um caráter científico, fiz a seguinte reflexão, a que intitulei, na correria da prova, As vacas todas pularam a cerca e não sobrou nenhum ruminar, mas o engolir de conteúdo:


“Comte, Marx, Engels, Aristóteles, Weber, Durkheim, Heráclito, Platão... Alguns dos nomes apresentados ao primeiranista de Direito em seu primeiro semestre de aventura nesse mundo estranho, nesse mundo acadêmico, nesse mundo universitário.
Ele conheceu a dialética, o materialismo, o devir pré-socrático, o positivismo, enfim, começou a aprender a falar uma nova língua, uma língua que ele não entende ainda, mas que sabe vai ser necessária. Entupiu-se de cultura clássica, marxista, liberal, renascentista, pois sabe que, mais do que tudo, sua formação cultural é importante...
Agora, a pergunta: necessária, importante, para quê?
E aquele estudante vai responder com uma convicção peremptória e orgulhosa: “Sendo o Direito a área que abrange todos os ramos humanísticos, preciso ter cultura para me colocar melhor no mercado.”
Então chegamos ao ponto chave. Nietzsche já dizia que o objetivo da cultura moderna é ser suficientemente rápida para tornar o homem rico, e suficientemente profunda para torna-lo muito rico.
Pois que, nessa ânsia “cultural”, o estudante devora os livros, todos eles, sem entendê-los, nessa sanha, nessa pressa de se tornar culto (já se sabe para quê), ele se esquece do que é a cultura, se esquece de ruminar antes de engolir toda sua literatura técnico-científico-filosófico-dogmática. As vacas todas pularam a cerca, o ruminar foi deixado para trás, ficando apenas o pasto do conhecimento pisado e mal digerido, pontilhado pelo estrume da pressa com que fugiram as vacas.
E nisso a poesia fica para trás (as vacas pisaram nas flores), o belo, aquilo que merece observação fica para trás. Enquanto ele quase queima o papel na pressa de entregar o fichamento de metodologia, enquanto ele não dorme para fazer o trabalho de Economia, ele perde as tardes azuis de vento e céu lá fora, perde o sol em raios entre as nuvens, perde o nascer da lua lá no leste, perde os olhos e o perfume da menina que lhe espera, esquece-se de si mesmo e se metamorfoseia num ser estranho a si mesmo, numa mórula de advogado, jurista ou o que quer que seja. Enfim, se esquece de contemplar o não-acaso que é a natureza e seu próprio eu.
Já no primeiro semestre, ele se esquece.”

Lá se vão quase nove anos e agora, depois de terminar a dissertação de mestrado, fica a sensação parecida de não ter ruminado tudo o que li e de, premido pelo tempo e pela necessidade de finalizar os trabalhos, ter criado o péssimo hábito de engolir a informação necessária e não meditar adequadamente sobre ela. Numa auto-crítica, posso dizer que foram raros os momentos em que consegui fazer isso nesses três anos de mestrado (não por acaso, os momentos que resultaram nas partes que mais me agradam no trabalho redigido). Péssimo habito que acabei transferindo para outras áreas: ler literatura na correria; ler a Bíblia e não meditar no que li, ao contrário do que aconselha o salmista; engolir informação sem cessar e não parar muito para pensar. Enfim, um péssimo hábito, que não raro gera e esquecimento e não sedimenta nem o conhecimento, muito menos a sabedoria que dele deve decorrer.

Assim, relendo minha singela prova de metodologia à luz da experiência do mestrado, fica o anseio por uma vida intelectual mais ruminante, mais serena e reflexiva, e a esperança de que isso se espraie para a vida como um todo, nadando contra a corrente desses nossos dias tão apressados e sem meditação.

Ruminemos.