quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Graça intolerável

"Nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus
e loucura para os gentios." (1 Coríntios, 1.23)

O intolerável é ainda mais profundo! Ele se situa diretamente no coração do homem. Tudo o que o Evangelho nos anuncia é intolerável, inaceitável, imbebível para o homem real, de carne e osso, o homem de qualquer sociedade. Retomemos algumas grandes certezas.
A graça. Vocês creem que é agradável? Aprender assim que nós somos agraciados. Ou seja, que não depende de mim, que eu não posso nada. “Isso não depende nem daquele que quer nem daquele que corre...” A graça é odiosa para o homem. Não há nenhum prazer em se saber um condenado por natureza a quem um bom príncipe vem generosamente conceder a vida, assim, sem razão aparente, sem motivação realista que possamos compreender. Arbitrariedade pura: eu concedo graça a quem concedo graça e tenho misericórdia de quem tenho misericórdia. Como segurar, obrigar, constranger esse Deus? Nenhum sacrifício, nenhuma cerimônia, nenhum rito, nenhuma oração pode valer a graça, pois que precisamente ela é puramente graciosa e totalmente gratuita! Eu deveria ficar feliz? Mas não, é o famoso princípio do toma lá dá cá, da troca de presentes que se desfez no ar por esse negócio de graça, gratuito, preveniente, santificante, etc. Ora, a crer nos especialistas, esse mecanismo do toma lá dá cá é verdadeiramente decisivo nas relações e na natureza humanas. Eis então a Graça como algo totalmente inaceitável nessa perspectiva.
Mais há ainda mais: a graça exclui também o sacrifício. Girard tem perfeita razão quando mostra a que ponto o sacrifício era também um fator fundamental do ser humano. Não pode haver vida aceitável ou relação social sem sacrifício, e eis que justamente essa graça graciosa recusa a validade de todo sacrifício humano, ela arruína um fundamento do psiquismo humano. A Revelação é essencialmente contrariante e, além de não satisfazer a necessidade de religiosidade, também não satisfaz nenhuma outra necessidade nem as grandes aspirações ou seguranças do homem, por exemplo a necessidade de auto-justificação. O homem é possuído por uma vontade obsessiva de justificar a si mesmo, ou seja, de ao mesmo tempo se declarar justo, ser justo a seus próprios olhos, parecer justo aos olhos de seus próximos, seus vizinhos, seus conhecidos e, enfim, ser declarado justo pelo grupo inteiro ao qual pertence. Nas condutas humanas e nos movimentos sociológicos essa sede de auto-justificação é constante, fundamental. A exigência de justificação ou de racionalização é cada vez mais bem conhecida hoje em dia, porque é por essa via que o homem se reconhece como uma consistência. Sabemos agora que sujeitos constrangidos por pressão ou compromisso a adotar um partido de forma autoritária vêm inevitavelmente a justificá-lo como se fosse uma escolha livre. E por conseguinte, legitima o poder que o constrange.
Não pode haver estabilidade na sociedade a não ser que seus membros sejam justos e justificados pelo próprio pertencimento a esse grupo. Ora, mas eis que a Revelação do Deus do Sinai, e a de Jesus Cristo mais ainda, vêm inexoravelmente contradizer, combater, excluir essa vontade apaixonada, essa necessidade irredutível. Não, o homem não é jamais justo. Ele não cumprirá jamais o que Deus demanda. Qualquer que seja sua paixão, seu amor pela Torá, seus escrúpulos e suas virtudes, não é jamais “aquilo”, e perante Deus ele permanece sempre pecador, sempre em dívida, sempre fundamentalmente injusto. Veja-se o jovem que vem a Jesus, seguramente um bom fariseu, e que lhe diz: “Mestre, eu fiz tudo isso (tudo, isto é, essa Torá com suas mil prescrições minuciosamente detalhadas...), que é preciso ainda que eu faça?” Eis a situação, eu fiz tudo, e sei bem que há ainda alguma coisa a fazer. Mas o que? Vai, vende teus bens e reparte entre os pobres... Há por que se desesperar. E eis que Jesus vem ainda agravar essa situação. Primeiro ao afirmar que não há um yod sequer da lei que não deva ser cumprido, e depois ao “espiritualizar” essa lei. (“Vocês ouviram o que foi dito: Não adulterarás. Mas eu lhes digo: Qualquer que olhar para uma mulher para desejá-la, já cometeu adultério com ela em seu coração”) . Depois ao fazer transparecer, por sua vida e morte, que esse homem injustificável perante Deus é na verdade justificado pela Graça, pelo amor de Deus.
Entendamos bem: “ele é justificado”. A pior injúria que pode ser feita a um homem. Ele é despojado de sua grandeza, de sua autonomia, de sua faculdade de justiça. Alguém (pois nesse momento e nessa cólera Deus se torna para o homem apenas um alguém) o justifica a partir do exterior. Um príncipe soberano concede uma graça a seu súdito prostrado em sua sujeira e abjeção, das quais ele não consegue se livrar por si mesmo. Essa justiça, não é o homem que dá a si mesmo. Ele nem mesmo é capaz de dizer no que ela consiste. Ele não pode se apropriar dela, não pode atribuir a si mesmo nem a virtude de justiça nema glória de ter justificado a si mesmo (glória muito importante, tendo em vista que vários contos e lendas voltam sempre ao tema, o herói triunfa sobre mil provas do mal e termina por aceder à recompensa suprema que conquistou, e que corresponde sempre ao amor absoluto ou à pureza absoluta, ou seja, à justiça obtida ao preço de tantas provações: essa conquista é exatamente anticristã, tão paródica como pode ser frente à Revelação a busca pelo Graal ou o ciclo de Lancelot...). Eis então que, por meio dessa declaração de que o homem é justificado pela graça, pelo amor soberano de Deus manifesto na Morte de Jesus, o homem é despojado daquilo a que ele se apega essencialmente: ser ele mesmo o artífice de sua própria justiça.

Jacques Ellul, em A subversão do cristianismo

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